O conteúdo oculto
- 25 de jun. de 2021
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Livro - "Desenhando com o lado direito do cérebro", Betty Edwards
Cerca de seis meses após a publicação do livro original em 1979, tive a estranha e repentina experiência de perceber que o livro que escrevi continha outro conteúdo que eu desconhecia. Esse conteúdo oculto era algo que eu não sabia que sabia: eu havia inadvertidamente definido as habilidades básicas dos componentes da habilidade global de desenho. Acho que parte do motivo pelo qual esse conteúdo foi escondido de mim foi a própria natureza da educação artística da época, em que as aulas de desenho iniciais focavam em temas, como “Desenho de Natureza Morta”, “Desenho de Paisagem” ou “Desenho de Figura Humana", ou nas técnicas de desenho, como carvão, lápis, caneta e tinta, aquarela ou técnicas mistas.
Mas minha meta era outra: dar aos meus leitores exercícios que gerassem uma mudança cognitiva para o hemisfério direito, semelhante àquela causada pelo “Desenho de Ponta Cabeça”, o que implicava “enganar” o hemisfério esquerdo dominante para que ele abandonasse a tarefa em questão. Estabeleci cinco sub-habilidades que pareciam ter o mesmo efeito, mas naquela época pensava que talvez existissem dezenas de outras habilidades básicas.
Então, meses após o livro ser publicado, tive uma epifania durante uma aula de que, para aprender a desenhar imagens realistas de sujeitos observados, havia apenas as cinco sub-habilidades. Inadvertidamente, selecionei entre os diversos aspectos de desenhar algumas sub-habilidades fundamentais que pareciam mais alinhadas ao efeito do Desenho de Ponta Cabeça. E percebi que as cinco habilidades não eram para desenhar no sentido usual, e sim habilidades mínimas fundamentais para enxergar: como perceber bordas, espaços, relação, luzes e sombras, e a Gestalt. Assim como as habilidades de leitura, eram essas as habilidades necessárias para desenhar qualquer coisa.
Fiquei exultante com essa descoberta. Debati isso longamente com meus colegas e vasculhamos livros didáticos de desenho, antigos e novos, mas não achamos quaisquer outros componentes fundamentais da habilidade global de desenhar conforme as percepções da pessoa, o que nos leva ao desenho realista básico. Então, pensei que talvez fosse fácil ensinar e aprender a desenhar em pouco tempo, ao invés de se arrastar nisso durante anos, como era a prática corrente nas escolas de arte. De repente, minha meta se tornou “o desenho ao alcance de todos”, não só para aspirantes a artistas. É óbvio que a habilidade básica para desenhar não desemboca necessariamente na “arte de alto nível” presente em museus e galerias, assim como a habilidade básica para ler e escrever, geralmente, não resulta em grandeza literária ou em obras publicadas. Mas, sabia que aprender a desenhar era algo valorizado por crianças e adultos. Deste modo, minha descoberta me levou a novas direções, resultando em uma revisão de Desenhando com o Lado Direito do Cérebro em 1989, na qual explicava meu insight e propunha que indivíduos que nunca haviam conseguido desenhar poderiam aprender isso rapidamente.
Em seguida, eu e meus colegas elaboramos uma oficina de 40 horas de ensino e aprendizado, cinco dias com e carga diária de oito horas, que foi surpreendentemente efetivo: nesse curto período, os alunos adquiriram habilidades básicas suficientes para desenhar e obtiveram todas as informações necessárias para continuar progredindo nessa atividade. Como desenhar coisas percebidas é uma tarefa sempre igual que requer as cinco habilidades componentes básicas, poderiam optar por qualquer tema, aprender a usar todos os materiais de desenho e se aperfeiçoar até o ponto desejado. Também poderiam aplicar suas novas habilidades visuais para raciocinar. Os paralelos com o aprendizado da leitura estavam se tornando cada vez mais evidentes.
Na década seguinte, de 1989 até o ano de 1999, passei a me concentrar mais na ligação entre habilidades perceptivas e raciocínio lógico, a solução de problemas e a criatividade, especialmente após a publicação do meu livro de 1986, Drawing on the Artist Within. Nesta obra, propunha uma linguagem “escrita” para o hemisfério direito: a linguagem da linha, a linguagem expressiva da própria arte. Essa ideia de usar o desenho para ajudar a raciocinar foi muito útil em uma aula sobre criatividade que elaborei para estudantes universitários e em pequenos seminários corporativos sobre solução de problemas.
Então, em 1999, revisei novamente o Desenhando com o Lado Direito do Cérebro, mais uma vez incorporando o que nós havíamos aprendido ao longo dos anos, ensinando as cinco habilidades básicas e refinando as lições. Concentrei-me especialmente na habilidade da visão (proporção e perspectiva), que talvez seja a mais difícil de ensinar com palavras devido à sua complexidade e à dificuldade de os estudantes aceitarem o paradoxo, sempre uma maldição para o cérebro esquerdo lógico e afeito a conceitos. Além disso, insisti no uso de habilidades perceptivas para “enxergar” problemas.
“O prazer mais nobre é a alegria de compreender.”
— DA VINCI, Leonardo
Agora, com esta revisão feita em 2012, quero esclarecer ao máximo a natureza global do ato de desenhar e a ligação das habilidades componentes básicas para desenhar com o raciocínio em geral e a criatividade em particular. Tanto nos Estados Unidos quanto no restante do mundo fala-se muito em criatividade e na necessidade de haver inovação e invenção. Há muitas sugestões para tentar isso ou aquilo, mas falta chegar ao âmago da questão, que é justamente como se tornar mais criativo. Nosso sistema educacional parece propenso a eliminar até o último resquício o treinamento perceptivo e criativo do lado direito do cérebro, ao passo que superestima as habilidades mais desenvolvidas pelo lado esquerdo do cérebro: memorizar datas, dados, teoremas e eventos, a fim de passar nas provas padronizadas. Atualmente, além de testar e formar as crianças de maneira rasteira, as escolas não as ensinam a enxergar e compreender o sentido profundo daquilo que aprendem e nem a perceber a conectividade das informações sobre o mundo. Sem dúvida, é hora de tentar algo diferente.
Segundo uma reportagem recente, felizmente, a maré parece estar virando. Alguns cientistas cognitivos da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, estão recomendando a chamada “aprendizagem perceptiva” para compensar as falhas de nossas práticas educacionais.
Eles esperam que tal treinamento seja aplicado para outros contextos e obtiveram algum êxito. A conclusão da reportagem, porém, é desanimadora: “Em uma educação marcada por ferramentas de aprendizagem computadorizadas e programas piloto de todos os tipos, o futuro desses esforços em prol da aprendizagem perceptiva ainda é incerto. Cientistas ainda não sabem qual é a melhor maneira de treinar a intuição perceptiva e nem quais são os princípios específicos mais adequados para fazê-lo. E tais ferramentas, caso sejam de fato incorporadas aos currículos, estarão sujeitas ao discernimento dos professores²

Na história das invenções, muitas ideias criativas começaram com pequenos esboços. Os exemplos acima são de Galileu, Jefferson, Faraday e Edison. —NELMS, Henning. Thinking with a Pencil (Nova York: Ten Speed Press, 1981), p. 14
2. CAREY, Benedict. Brain Calisthenics for Abstract Ideas, The New York Times, 7 de junho de 2011 (legenda da imagem)
3. ARNHEIM, Rudolf . Visual Thinking (University of California Press, 1969).
Vale destacar que a melhor maneira para treinar as habilidades perceptivas está ao nosso alcance há décadas, porém, não quisemos ou não pudemos aceitá-la. Não acho que seja mera coincidência que, com o declínio constante do desenho e das artes criativas nos currículos escolares em geral, desde meados do século XX, o desempenho educacional dos estudantes nos Estados Unidos também tenha decaído, a ponto de ser atualmente superado por Singapura, Taiwan, Japão, República da Coreia, Hong Kong, Suécia, Holanda, Hungria e Eslovênia. Em 1969, o psicólogo perceptivo Rudolf Arnheim, um dos cientistas mais lidos e respeitados do século XX, escreveu:
“As artes são negligenciadas porque se baseiam na percepção, e a percepção é desdenhada porque, supostamente, não envolve o pensamento. Na verdade, educadores e administradores não darão às artes uma posição importante no currículo, enquanto não entenderem que elas são o meio mais poderoso de fortalecer o componente perceptivo, sem o qual o raciocínio produtivo é impossível em todos os campos de estudo acadêmico."
"Não precisamos de mais estética nem de mais manuais esotéricos de arte-educação, e sim de argumentos convincentes em prol do raciocínio visual em geral. Assim que isso for entendido na teoria, será possível tentar sanar na prática a divisão doentia que incapacita o treinamento do poder de raciocinar."³
De fato, desenhar envolve o pensamento e é um método eficaz para o treinamento perceptivo. E o conhecimento perceptivo pode impactar a aprendizagem em todas as disciplinas. Já sabemos ensinar a desenhar rapidamente. Sabemos que aprender a desenhar, assim como aprender a ler, não depende de algo chamado “talento” e que, com as instruções apropriadas, qualquer pessoa consegue aprender uma habilidade. Além disso, com as devidas instruções, as pessoas podem aprender a transferir os componentes perceptivos básicos de desenhar para outras aprendizagens e para o raciocínio geral. Como dizia Michael Kimmelman, crítico de arquitetura do New York Times, aprender a desenhar é um propulsor para a felicidade – uma panaceia para a lida ridícula e despida de criatividade das provas padronizadas que nossas escolas adotam.
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